27 de abril de 2021
há algum tempo atrás eu recebi a seguinte imagem, sobre um suposto dia em que pedro bial goleou um time de cadeirantes:
eu achei a imagem bem engraçada, e ficou claro pra mim que era uma piada. o pedro bial jamais faria isso (ao menos publicamente), e uma pesquisa rápida no google provou que realmente era zoação do tal "enzo negativo". boa piada, todos riem, desce o pano.
exceto que alguns dos meus amigos acreditaram nessa porra. não só isso, mas quando eu mostrei pra eles que era falso, eles ficaram irritados. muitos começaram a chamar a imagem de "fake news", e alguns foram até caçar a página do "enzo negativo" pra lhe contar umas poucas e boas (!!). essa reação me pareceu extremamente inadequada. como eu falei, pra mim a imagem era claramente uma piada, e se eles acharam que era verdade, a culpa era mais deles do que do autor do texto. chamar uma imagem tão tosca de "fake news" me parecia... idiota.
ou, pelo menos, essa foi a minha primeira reação. mas depois de pensar um pouco, fui percebendo que as coisas talvez fossem realmente mais complicadas do que pareciam.
de fato, qual é a diferença entre piada e "fake news"?
o primeiro passo é procurar uma definição.
um dicionário seria sucinto demais pros nossos interesses, então eu fui procurar algum artigo sobre o assunto. Tandoc et. al (2017) propõem a seguinte distinção, que eu acho bem razoável:
sátira jornalística: um veículo que apresenta notícias reais, normalmente com exagero e humor. exemplos atuais seriam "Last Week Tonight with John Oliver" e "Colbert Report". normalmente os apresentadores são comediantes conhecidos, e todo mundo sabe que o programa é humorístico.
paródia jornalística (ou, piada): um veículo que publica notícias falsas como se fossem verdadeiras, com a intenção de fazer humor. normalmente as notícias são absurdas e isso faz parte da graça. o exemplo canônico seria o "The Onion", mas no brasil também temos "O Sensacionalista" e a "TV Maresol" (que é a minha favorita). a paródia, diferente da sátira, normalmente não deixa explícito o teor humorístico, e esclarece a inveracidade usando sugestões implícitas (por exemplo, a página "about" do "The Onion" afirma que o público do jornal é de 4.3 trilhões de pessoas).
fabricação jornalística (ou, fake news): um veículo que publica notícias falsas como se fossem verdadeiras, com a intenção de desinformar e enganar as pessoas. exemplos seriam... ?? não conheço site de fake news!!
como falei, eu acho a definição do artigo bem razoável, e não consigo pensar em nenhuma crítica óbvia. mas se a gente partir dessa definição, dá pra perceber que sites de paródia e "fake news" são bem parecidos. ambos imitam sites jornalísticos tradicionais e bem reputados, ambos produzem notícias falsas, e ambos não deixam explícito que as notícias são falsas.
as únicas duas diferenças entre paródia e "fake news" são:
a intenção da paródia é fazer humor, enquanto a intenção da "fake news" é enganar o público;
e a paródia deixa implícito que as notícias são falsas, enquanto os sites de "fake news" não.
eu diria que essas diferenças são bem fundamentais, e que na maior parte dos casos elas são suficientes pra gente distinguir piada de "fake news". no entanto, existe um problema gravíssimo: ambas essas diferenças são pautadas em algo subjetivo.
em primeiro lugar, a intenção dos autores jamais pode ser descoberta pelo leitor, então isso não serve como base pra diferenciar nada.
em segundo lugar, o disclaimer implícito que marca as paródias depende totalmente do perfil do leitor. o leitor precisa estar atento a possíveis pistas e incongruências deixadas pelo autor, e isso requer um certo nível de atenção e interpretação de texto que nem todo mundo tem, ou quer usar. por exemplo, na foto do pedro bial não tem nenhum cadeirante, e isso pra mim foi uma pista clara de que era meme (por que ele não teria botado uma foto dos cadeirantes, se ela existisse?), mas provavelmente muita gente simplesmente ignorou isso.
além do mais, a própria definição de "incongruência" depende de uma visão de mundo compartilhada entre o autor e o leitor. por exemplo, o trecho "Bial começou a gritar: "Perdedores! Perdedores! Perdedores!", seguido de risadas" foi pra mim outra pista clara de que o texto não era real, porque simplesmente... não parece real. eu não consigo nem articular o motivo exatamente, porque isso está totalmente imbutido na minha visão de mundo: eu não consigo imaginar que o pedro bial realmente diria essas palavras, muito menos em um evento beneficente público. é claro que isso poderia ser real (afinal a realidade é mais estranha que a ficção, e todo dia o brasil se supera), mas eu tenderia a duvidar.
um outro exemplo engraçado sobre isso: meu pai outro dia chegou pra mim com o celular na mão (já sei que lá vem coisa boa). ele me mostrou uma "notícia" do jô soares dizendo que ganhou milhões com bitcoin, junto com um link de "compre aqui". eu achei bem engraçado porque né, jô soares vendendo bitcoin, mas meu pai não veio até mim pra perguntar se era verdade, ele veio até mim me pedir pra comprar bitcoin pra ele. ou seja, ele acreditou piamente na notícia! por que nenhuma bandeira vermelha acendeu na cabeça do meu pai quando ele leu a frase "jô soares vendendo bitcoin"? porque a visão de mundo do meu pai é completamente diferente da minha, e o golpista obviamente sabia disso.
meu pai é desatento? não soube usar interpretação de texto? talvez, mas nesse caso específico eu acho que é mais uma questão dele não saber direito o que é bitcoin (e confiar demais no jô soares).
em resumo: a diferença entre paródia e fake news mora no cérebro do leitor, e não é a toa que toda hora as pessoas confundem os dois. o exemplo do pedro bial é um, o exemplo do jô soares poderia ser outro (no caso era só um golpe mesmo, mas eu achei engraçado, então foi quase uma piada), e isso acontece toda hora com sites de paródia como por exemplo o The Onion - é só ir no canal do youtube deles pra ver uma enxurrada de gente dando dislike achando que o vídeo é real.
conclusão: a diferença entre piada e "fake news" é subjetiva, e no fim das contas eu acho que meus amigos não estavam tão errados em usar o termo "fake news". fim da história.
mas, pra ser sincero, eu ainda não estou muito satisfeito. tudo bem, talvez a imagem possa realmente mesmo ser chamada de "fake news", talvez a definição se aplique. mas e a reação dos meus amigos? será que a raiva foi bem-posicionada? será que o autor do texto realmente merece a fúria de mil sóis?
ou será que meus amigos deveriam estar fazendo um mea culpa, e levando o meme na esportiva? afinal de contas, quem é o culpado pelos meus amigos terem sido enganados: o autor do texto, ou eles mesmos?
tenho certeza que centenas de livros foram escritos sobre esse assunto: se a autoria do texto é do leitor ou do autor. infelizmente eu cursei ciência da computação e não tenho nenhum background formal na área; se alguém tiver lendo isso e pensando "hmm agora ele vai falar de [insira nome em alemão aqui]", por favor deixe nos comentários porque eu realmente queria estudar mais sobre esse tipo de coisa. mas até que esse dia chegue, persisto trogloditando.
ao meu ver, a responsabilidade pela interpretação do texto é compartilhada pelo autor e pelo leitor. por um lado, se o tal "enzo negativo" não tivesse escrito uma notícia falsa, não teria nada pros meus amigos acreditarem; mas por outro lado, se meus amigos tivessem feito uma pesquisa rápida no google, teriam percebido que nada no texto faz sentido. de quem é a culpa? de ambos! você é responsável não só pelo que fala, mas também em parte pelo que as pessoas entendem.
o problema é que eu acho que o autor tem menos culpa nesse caso, pelo simples fato de que ele fez a parte dele. tudo bem, a diferença entre piada e "fake news" é subjetiva, e depende de uma comunicação implícita entre o autor e o leitor - mas pelo menos o autor tentou fazer essa comunicação. as inconsistências estão lá, prontas pra serem falseadas. é claro que ele correu um risco ao escrever o texto, tendo em vista que a comunicação poderia falhar (e, no caso dos meus amigos, falhou), mas pelo menos houve uma tentativa.
alguém poderia dizer que o autor não tentou o suficiente. por exemplo, ele poderia ter deixado explícito que era uma piada, botando um disclaimer grande no estilo "é brincadeira, pessoal!", ou alguma coisa do tipo. mas pra mim, essa sugestão deveria ser evitada.
uma paródia é uma piada; como toda piada, ela sofre ao ser explicada. se o autor tivesse deixado a natureza da piada explícita na imagem do pedro bial, eu provavelmente não teria rido tanto assim, ou acharia cringe, ou algum misto dos dois. além disso, explicar a piada também é uma forma de insultar a inteligência do público, afinal você está partindo do pressuposto de que as pessoas não são inteligentes o suficiente pra conseguir entender a graça. ou, no caso, pra conseguir entender que é engraçado.
mas eu entendo o argumento dos meus amigos, porque na prática existem dois públicos: (1) as pessoas que entenderam a piada, e (2) as pessoas que não entenderam. quando você explica a piada, você pode realmente estar insultando as pessoas que entenderam, mas por outro lado você está impedindo que as pessoas que não entenderam sejam enganadas, e acabem compartilhando algo que é falso. então na prática existe sim uma vantagem em explicar a piada... acaba sendo um trade-off.
uma segunda sugestão pra tornar a piada mais explícita é criar notícias que sejam absurdamente implausíveis, a ponto de serem realmente inacreditáveis. por exemplo, o texto poderia ter terminado com o pedro bial abaixando as calças e fazendo cocô na cabeça dos cadeirantes; talvez fosse suficiente pra que as pessoas entendessem que é uma piada! (assumindo, é claro, que elas chegassem no final do texto). ou seja, é uma solução que envolve exagero, e que tenta contornar o problema do subjetivo recorrendo a uma visão de mundo que seja compartilhada por todos, ou pelo menos pela vasta maioria. basicamente: remova a sutileza.
em teoria isso não resolve nada: o que é plausível pra um continua podendo não ser plausível pra outro; mas na prática, acho que dá pra chegar em um consenso razoável do que é uma "visão de mundo compartilhada pela vasta maioria" (por exemplo, a questão escatológica acima). acho que é uma solução viável, e acho inclusive que é melhor do que explicar a piada, mas também não é uma solução que me agrada muito.
o problema é que, pra mim, a graça da paródia é justamente a sutileza. é isso que separa o "Casseta & Planeta" do "The Onion": o bom parodista está sempre dançando na ponta da faca, no equilíbrio do plausível e do absurdo. ele precisa exagerar a realidade, mas sempre ancorado no possível.
por exemplo, uma manchete como "Hackers invadiram Twitter de Salles com a senha ‘queimapantanal’" é engraçada por conta do exagero: o Salles é um imbecil anti-ambientalista, e o escritor exagerou isso pra fazer humor. mas o humor também vem da plausibilidade: ataques hackers ficaram comuns nos últimos meses, e algumas senhas de políticos realmente são estúpidas (ou você esqueceu que a senha da conta do Planalto era "planaltodotemer2016"?). é preciso ser exagerado, mas remotamente plausível. é preciso ter um fundo de verdade.
então essa segunda sugestão, de exagerar completamente, também não é ideal.
uma terceira (e última) sugestão é: não explicitar a piada no texto, mas no meta-texto. é o que acontece com o "The Onion": apesar do site deles não explicitar que são paródias, basta procurar "The Onion" no google e o primeiro resultado vai ser a wikipédia, que começa com "The Onion is an American satirical digital media company...". o mesmo acontece com "O Sensacionalista". a TV Maresol, por outro lado, prefere uma abordagem mais direta:
(por trás de todo aviso, existe uma história.)
essa solução mantém as notícias soltas como "piadas não explicadas", mas também deixa explícito que o site publica notícias falsas. parece ótimo!
mas tem dois problemas com essa abordagem. o primeiro é: quem garante que o leitor vai procurar o nome do site no google, ou ler a bio da conta no twitter? a gente continua dependendo da interpretação de texto e boa vontade do leitor, duas coisas que queríamos evitar. além disso, ainda tem um segundo problema: em certos casos é praticamente impossível se apropriar do meta-texto, como por exemplo quando o nome da página não é conhecido. procurar "enzo negativo" no google traz pouquíssimos resultados, então nem sei qual a bio da página (é possível que a página tenha sido deletada ou renomeada depois da repercussão dessa imagem). no fim das contas, essa solução não resolve quase nada.
essas são as três soluções óbvias que poderiam ser dadas pra tornar o texto explicitamente jocoso. eu não acho que nenhuma das três funcionaria.
o que o autor pode fazer, é o que ele já fez: escrever um texto com incongruências absurdas que induzam o leitor a perceber que tem alguma coisa de errado; e simultaneamente polvilhar os parágrafos com informações facilmente falseáveis pra quem souber usar o google. o resto... fica como dever de casa pro leitor. o plausível precisa ser mantido, e isso significa que sempre existe a possibilidade de alguém acabar caindo; mas a piada não é a pessoa cair, a piada é simplesmente o exagero. a pessoa cair é só uma triste falha de comunicação.
então eu defendo totalmente meu camarada "enzo negativo", e se eu fosse escrever uma paródia, eu me basearia totalmente na imagem dele. não que eu tenha feito isso, é claro!
resumo da ópera: a diferença entre fake news e parodia é sutil, e todo mundo tem que fazer seu dever de casa, tanto o autor quanto o leitor. nesse caso específico eu acho que o autor fez certo e os leitores comeram bola.
mas de fato, eu acho que a parte mais interessante da história é a seguinte: se as pessoas estão acreditando que o pedro bial goleou os cadeirantes...
no que mais elas estão acreditando?
ou, melhor dizendo...
no que mais eu estou acreditando?