[spoilers leves sobre alguns momentos de bugsnax. nenhum spoiler narrativo grande]
como parte da minha busca insaciavel por um jogo de pokémon que seja focado em exploração, eu recentemente joguei o famigerado "bugsnax", lançado em novembro de 2020 pelo estudio young horses. até pouco tempo atras, pra mim bugsnax era "o jogo que tinha a musica do kero kero bonito"; agora, ele é "o jogo perfeito pra se mostrar como não fazer exploração". vejamos o porquê.
em Bugsnax™, você é um jornalista que acaba de chegar em Snaktooth Island, uma ilha recém-descoberta cuja fauna natural são os insetos comestíveis denominados "bugsnax". nessa ilha mora a pequena comunidade de Snaxburg, formada por indivíduos que decidiram abandonar suas vidas passadas pra morar no meio do nada, comendo bugsnax e reclamando uns dos outros. (eu imagino que ninguém tenha sentido muita falta deles, porque todos os NPCs desse jogo são detestáveis, mas isso não vem ao caso)
seu objetivo é escrever uma matéria sobre a ilha: quem são essas pessoas? por que elas decidiram morar aqui? bugsnax realmente existem? infelizmente seu trabalho envolve mais do que entrevistas - a comunidade de Snaxburg se dispersou depois de uma DR coletiva, e por motivos de videogame, cabe a você explorar a ilha e encontrar cada um desses indivíduos, fazendo suas questlines e convencendo-os a retornar para a vila, onde eles enfim poderão ser entrevistados por você. depois de entrevistar todos os 12 NPCs, começa a sequência de fim do jogo.
se parece estranho que até agora eu não falei sobre caçar pokémons... pois é. existe uma discrepância entre o que o jogo é e o que ele quer ser, e eu vou falar sobre isso mais pra frente. mas é nessa parte de "questlines" que você caça os pokémons; cada NPC fica numa área diferente (deserto, floresta, montanhas de gelo etc - mama mia), e eles dizem que só vão voltar pra Snaxburg se você trouxer bugsnax específicos. por exemplo, um NPC quer que vc traga picolés pra ele poder andar no deserto; outra quer que você traga um abacaxi pq ela precisa de "inspiração musical" (??), e assim por diante. as questlines são, em grande parte, comicamente straightforward (pegue 3 pipocas! pegue 2 cachorros-quentes!) e de imediato me fizeram pensar em fetch quests de MMORPGs. e todo mundo gosta de fetch quests, não é mesmo?
a captura dos bugsnax em si é a parte mais interessante do jogo. você tem uma gama variada de ferramentas à sua disposição - iscas, estilingues, grappling hooks, tripwires -, e toda a parada é como você vai usar essas ferramentas pra fazer os bugsnax ficarem vulneráveis e entrarem na sua arapuca. nesse sentido, cada bugsnax é um puzzle, e um puzzle aberto ainda por cima - frequentemente existe mais de uma forma de capturá-los, o que me remeteu diretamente às missões de MGS V ou aos shrines de breath of the wild (que eu gosto bastante!). também há bastante variedade: alguns bugsnax são bem simples de serem capturados, enquanto outros testam o seu conhecimento do cenário e pedem que você manipule os outros bugsnax do habitat. é exatamente isso que eu queria que pokémon tivesse!!! eu ficava animado toda vez que eu desbloqueava uma área nova: quais bugsnax vou encontrar? como capturá-los?
ou, melhor dizendo, eu fiquei animado durante as primeiras 3 áreas do jogo, porque toda vez que eu saía correndo gritando "olha que legal os bugsnax!!!! temos que pegar!!!!", o jogo rapidamente puxava a coleira ao redor do meu pescoço e dizia: "nananinanão, dá a mão pra mamãe aqui. anda do meu lado =)". logo aprendi que o jogo não estava minimamente interessado em me deixar explorar.
a primeira razão pra isso envolve os limites impostos pelo sistema de captura. vamos supôr que, ao entrar numa área nova, você ignora a questline em um primeiro momento e começa a explorar os arredores, capturando os bugsnax que te deixam mais curioso. cada área tem cerca de 10 ou 15 bugsnax diferentes, mas como existe um limite na quantidade de bugsnax que você pode carregar ao mesmo tempo (são 6), depois de capturar nem metade dos bugsnax da área, você já tem que começar a descartar os que previamente capturou! isso pode parecer inofensivo, mas pense no seguinte: eventualmente você vai ter que fazer a questline da área pra progredir, e eventualmente ela vai te pedir pra capturar 3 pipocas ou qualquer coisa do tipo. se você estiver jogando da forma como eu expliquei, é altamente provável que você já tenha capturado as 3 pipocas, mas tenha descartado elas por falta de espaço!! então o ciclo de cada área vira: capturar todos os bugsnax que conseguir, descartar boa parte deles fora, e depois capturar eles de novo (várias vezes) pra poder completar a quest. já está se divertindo?
claramente, o jogo não quer que você saia por aí capturando pipocas, ele quer que você pegue as pipocas só quando ele disser que é pra pegar pipocas. essa é a única forma de você não ter que ficar repetindo o que já fez só porque o NPC bunda mole pediu. além da repetição ser uma perda de tempo, ela também é entediante: grande parte do prazer é descobrir como capturar os bugsnax, ou seja, qual a solução do puzzle. depois que você já descobriu isso, ficar capturando o mesmo bugsnax 2 ou 3 vezes é tão interessante quanto ouvir a mesma piada várias vezes seguidas!!!
não é só através dos bugsnax que o jogo desestimula a exploração do jogador: o mesmo princípio aparece nos puzzles geográficos. é mais fácil explicar isso com um exemplo. enquanto eu explorava a área do deserto, eu encontrei uma porta que parecia quebrável. nenhuma das minhas ferramentas conseguia quebrá-la, mas eu me lembrei que existia um bugsnak na região que funcionava tipo um rinoceronte, e concluí que talvez eu pudesse manipulá-lo pra ele quebrar a porta pra mim. eu atraí ele pra porta usando as iscas e dei um "olé!!" nele saindo do caminho no último momento, e lo and behold, ele quebrou a porta! não só minha atenção foi testada (tive que notar a porta), como também meu conhecimento sobre os bugsnax e sobre a geografia do lugar. eu me senti inteligente!
qual a minha recompensa por ter resolvido o puzzle? atrás da porta tinha uma caverna, e dentro dessa caverna tinha... nada. uma parede com pinturas rupestres, cujo significado não entendi muito bem. "environmental storytelling?", pensei, anotando mentalmente o que eu tinha visto. um mistério...
mas não era um mistério. pouco tempo depois, uma NPC da região me deu uma quest pra eu quebrar a mesmíssima porta; como a porta já estava quebrada, a quest se auto-completou sozinha. anticlimaticamente, a NPC foi até a caverna e iniciou um diálogo, me explicando exatamente o que as pinturas rupestres significavam.
eu poderia ficar o dia inteiro citando exemplos como esse, em que o jogo te oferece oportunidades pra explorar e seguir sua curiosidade, mas que em última instância ele acaba tornando explícitas e/ou obrigatórias. a fins de tornar o texto mais curto, segue uma parte opcional pra quem estiver interessado:
em certas partes do jogo, você encontra páginas rasgadas deixadas para trás por uma menina que desapareceu. duas dessas páginas contém instruções abrir uma porta secreta na área de gelo (ver abaixo).
durante todo o jogo, eu fiquei esperando ansiosamente pelo momento em que eu desbloquearia a área de gelo e poderia usar as páginas pra resolver o puzzle, potencialmente resolvendo um mistério (pra onde será que a menina foi?). quando eu finalmente consegui visitar essa área, não pude interagir de forma alguma com a porta secreta, até que avancei o suficiente na questline do NPC da área e - i shit you not - a porta foi aberta durante uma cutscene. parece zoeira eu sei mas não é.
em uma área do deserto, tem uma pirâmide gigantesca cheia de estátuas misteriosas, com um símbolo de pizza no centro. nos céus ao longe, é possível avistar um "pokémon lendário" em formato de pizza. hmm...
agora aqui temos um mistério gostoso! como atrai-lo para baixo, como capturá-lo? a presença de uma estátua em formato de cortador de pizza (ver imagem abaixo) dá a impressão que você talvez tenha que ativa-la de alguma forma, e o fato das estátuas serem de um bugsnax-burrito te induzem a acreditar que você terá que utilizá-los em algum momento. eu passei um bom tempo tentando descobrir como ativar as estátuas, como chamar a pizza, mas não tive nenhum sucesso.
depois de zerar o jogo eu fui procurar no google, e em retrospecto eu já devia ter imaginado: nenhum daqueles objetos é interativo a menos que você esteja fazendo uma quest específica. :-)
numa das áreas iniciais do jogo, você pode entrar dentro da casa de uma NPC, e em cima da cabeceira dela tem um "diário secreto". se você tentar pegar o diário, ela grita: "ei, não veja meu diário!", o que faz todo o sentido!
quando você completa a questline da NPC, ela sai da área e volta pra cidade. obviamente a primeira coisa que eu fiz foi voltar na casa dela e tentar pegar o diário novamente - afinal, ela não estava na área, como poderia me impedir? eu me senti muito inteligente pra ser sincero, e estava doido pra saber o que eu poderia encontrar. você consegue imaginar o que aconteceu quando eu interagi com o diário dela?
o diário é falso.
a esse ponto, é como se o jogo estivesse ativamente mandando você tomar no cu por estar tentando explorar. é fascinante!
são tantos os exemplos que é difícil acreditar que isso não tenha sido proposital.
há algum tempo escrevi "anotações sobre magia e exploração", onde propus uma framework pra analisar exploração em jogos. a partir dela, eu comentei diversas formas através das quais jogos podem acabar falhando em estimular a exploração, como por exemplo não oferecendo ferramentas pro jogador explorar, ou não estimulando a curiosidade do jogador. bugsnax escapa de todas essas armadilhas e falha de uma forma completamente nova: de que adianta permitir e incentivar a exploração, se você vai tornar essa exploração obrigatória em algum momento? existe uma noção de opcionalidade que é inerente à curiosidade enquanto motivação intrínseca, e que está relacionada com a presença de mistérios e segredos. bugsnax falha porque evita ter qualquer um dos dois: tudo que você encontrar será eventualmente explicitado pelo jogo, e portanto a curiosidade é ignorada; por conta dos sistemas que mencionei anteriormente, ela é até mesmo punida!
ao te forçar a explorar, o jogo te faz desistir de explorar.
nesse momento, alguém poderia dizer: "vinicius, você achou que o jogo ia ser uma coisa, e ele acabou sendo outra. você não pode julgar o jogo por algo que ele não é!", para o qual eu responderia: "mas é claro que eu posso!!!". ainda mais num caso como esse, em que parte do jogo claramente quer oferecer desafios emergentes ao jogador, quer atiçar sua curiosidade com estruturas interessantes, quer fazer environmental storytelling. o desejo está lá, reprimido. o jogo tem segredos, mas ele os desconstrói sistematicamente ao integrá-los com a narrativa.
sabe o que eu sinto? eu sinto que parte da equipe queria fazer um jogo, e outra parte queria um jogo totalmente diferente, e no final eles juntaram e o resultado não ficou muito legal. os sistemas de captura e as áreas abertas estimulam a curiosidade e a exploração, mas o progresso do jogo é linear e rígido. quando eu soube que o jogo era sobre criaturas uncanny que são a mistura imperfeita entre dois conceitos díspares, eu nunca imaginei que fosse desse jeito.