você já jogou dark souls? chegou a zerar? se sim, talvez tenha acontecido com você a mesma coisa que aconteceu comigo: eu vi os créditos rolarem e percebi que não tinha entendido porra nenhuma do jogo. eu não sabia o que tava acontecendo na história, por que que aquela era a batalha final, ou qual o significado da última cutscene.
ou seja, eu não tinha entendido quase nada.
os créditos rolavam, mas eu não tinha tido closure. muitas perguntas em aberto. havia um fogo dentro de mim, uma chama que queria consumir mais, que queria ser alimentada. eu não estava insatisfeito ou zangado com o jogo - eu só estava com fome.
o que fiz em seguida foi o que fui treinado pra fazer, sendo um cidadão do século 21: fui pra internet. procurei textos, vídeos, coisas que pudessem me alimentar, respostas pras minhas perguntas. eu li entrevistas com o miyazaki sobre o design do jogo, assisti vídeos de análise de 3h, li teoria atrás de teoria de pessoas que chegaram a abrir o código do jogo pra analisar suas entranhas.
e aos poucos, a chama foi se apagando. satisfeita.
acho que o cúmulo foram os vídeos do vaati vidya, um canal no youtube que basicamente só posta lore de jogos da from software. os vídeos do cara explicam tudo, tudinho - desde o macro (o que acontece ao longo do jogo) quanto o micro (quem é o personagem tal, o que ele fez, etc). é um compilado exaustivo de informação sobre dark souls.
eu engoli tudinho, como se nunca tivesse visto um vídeo na vida. não lembro que horas fui dormir na madrugada que encontrei o vaati vidya, mas lembro que era uma madrugada.
e como num passe de mágica, a vontade foi embora completamente. finalmente, eu tinha exorcisado dark souls da minha vida.
e foi bem triste!
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tem um board game chamado sherlock holmes: consulting detective, em que você e seus amigos controlam ajudantes do sherlock holmes. o objetivo é tentar resolver crimes: quem matou fulano, com que arma, enfim.
o fluxo do jogo é basicamente ir em lugares e falar com pessoas. existe uma lista relacionando lugares a páginas, e você usa essa lista pra se guiar: então por exemplo se você quer ir na cena do crime, a lista te redireciona pra página 7 do manual - lá tem um texto de vocês inspecionando a cena do crime e conversando com alguém. talvez lendo esse texto você descubra um suspeito do crime - nesse caso, você pode em seguida ir na casa do suspeito (página 17) e ler alguns parágrafos de diálogo entre vocês.
isso continua até os jogadores decidirem que sabem a solução: nesse ponto, se pula pra página X do manual, onde tem um monólogo do sherlock holmes explicando sobre a verdadeira resposta. a pontuação do jogo é basicamente se você acertou a solução, e quantos lugares você teve que visitar pra descobri-la.
na primeira vez que eu joguei o jogo, eu passei literalmente 2 dias pensando nas pistas - um sábado e um domingo. eu estava jogando com a silvia, e estávamos em dúvida entre 2 suspeitos. eu me lembro que pensei tanto que fiquei com uma dor de cabeça intensa (zerei o jogo na base da novalgina), e quando finalmente decidimos ler a solução, descobrimos duas coisas:
ao longo do nosso jogo, a gente visitou um bando de lugares: a cena do crime, o necrotério, o escritório da vítima, etc. tudo pareceu necessário para eliminarmos dúvidas e descobrirmos o culpado. mas sherlock holmes só visitou praticamente a cena do crime: ele olhou pro cadáver e deduziu que pela posição dos braços da vítima, "evidentemente" ela havia sido morta enquanto estava fazendo sei lá polichinelos e portanto o culpado era X e não Y porque embaixo da sola do sapato havia um grão de areia e grãos de areia apenas migram no inverno e "obviamente" e "trivialmente" e "não poderia ser de outro jeito" que...
se nosso caminho havia sido tortuoso, com muitos becos sem saída e falsas respostas, o de sherlock foi como um míssil teleguiado: em dois parágrafos ele descobriu tudo: o culpado, a motivação, a arma do crime.
mas uma coisa que ele não deu foi detalhes.
por que que o álibi do culpado estava errado? porque a vítima tinha uma amante? o que aconteceu naquele dia com os outros suspeitos? na nossa investigação, todas essas perguntas tinham sido importantes, e passamos literalmente horas pra descobrirmos suas respostas. realmente, no fim das contas eram apenas distrações, mas como que a gente ia saber disso antes de investigar?
em nossa jornada desorientada em busca da resposta, a gente tinha descoberto uma caralhada de coisas que o sherlock jamais comentava.
ele tinha apontado a alternativa correta na múltipla escolha, mas só a gente sabia por que todas as outras respostas estavam erradas.
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a mesma coisa aconteceu com dark souls.
por alguma razão, eu tinha voltado a jogar o jogo, acho que por conta do DLC. e na DLC, eu descobri uma coisa curiosa sobre o design do jogo: basicamente, o motivo de alguns inimigos existirem. eu não quero entrar em detalhes porque acho desnecessário, mas a ideia é a seguinte: se você juntar as descrições de alguns itens com algumas observações do level design, dá pra perceber que dois monstros do jogo bem diferentes são basicamente o mesmo bicho em estágios diferentes da vida.
não é nada muito "óhhhh", mas pra mim foi bem legal. é o tipo de detalhe que faz o mundo do jogo parecer mais vivo.
de novo, fiz o que fui treinado a fazer: procurei sobre na internet. mas dessa vez, eu não encontrei absolutamente nada. ninguém estava comentando sobre isso - minha respiração começou a ficar mais acelerada.
eu tinha descoberto algo que o vaati vidya não sabia. e se ele não sabia isso, que nem era tão escondido assim, o que mais ele não sabia?
o que aconteceu naquele momento foi uma mudança de paradigma, como se eu estivesse percebendo que meus pais não são infalíveis, e que eles também são seres humanos assim como eu. o vaati vidya não sabia de tudo. e se ele não sabia de tudo, fazia sentido tentar descobrir as coisas por conta própria.
e por um instante, eu senti o fervor que os primeiros jogadores de dark souls devem ter sentido. a sensação de descobrir algo verdadeiramente oculto.
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em "preserving a sense of discovery in the age of spoilers", jim crawford (o cara do frog fractions) comenta sobre como antigamente todos os jogos eram misteriosos. sem a internet, não existia uma autoridade central com as respostas - o pouco que se sabia era passado de boca em boca. de vez em quando, saía um detonado em alguma nintendo power da vida, e só.
essa confusão generalizada iniciou uma era de ouro pra segredos em jogos: ninguém sabia com certeza o que cada jogo escondia, e as possibilidades pareciam infinitas. por isso que todo mundo acreditava numas coisas meio absurdas: que dá pra pegar a triforce no ocarina of time, que o mew estava escondido debaixo de um caminhão em pokémon red (!!!). por que seria absurdo? afinal, coisas mais absurdas existiam! em super mario, pra entrar no background do mapa você precisa ficar agachado durante 15 segundos! se isso era possível, porque não teria um gato escondido embaixo de um doblô?
mas com a internet, esses segredos passaram a ser disseminados. primeiro salas de discussão no IRC, depois tópicos de walkthrough em fóruns, depois .txts com todo o conhecimento que a humanidade possuía sobre ocarina of time. o sentimento de que "tudo era possível" foi diminuindo. se você queria saber se algo existia mesmo, bastava dar um google, e a Resposta Final aparecia num piscar de olhos.
na era da informação, mistério é apenas mais um problema a ser resolvido.
crawford diz que dark souls foi um dos poucos jogos recentes que passaram essa sensação de "mistério". com seus segredos obscuros e paredes ilusórias, dark souls resgatou algo que há muito não se via - ele era "retrô" não só na dificuldade, como também na implementação dedicada de segredos.
mas, como crawford também comenta, "o melhor momento pra se jogar esses jogos é imediatamente depois deles serem lançados, enquanto ninguém sabe de nada". depois disso, chegam os escritores de detonados, e todos os mistérios são devidamente catalogados: escrevem-se as páginas da wiki, filmam-se as análises. o gamer, antes de ser um gatekeeper, é um bibliotecário.
eu acho que preferia não ter assistido os vídeos do vaati vidya.
será que é assim mesmo que deveria ser? um jogo é lançado, uma comunidade se forma, resolve todos seus mistérios, escreve uma wiki e passa pro próximo? será que eu estou reclamando só porque não estava lá? será que eu realmente quero proibir as pessoas de conversar sobre um jogo e passar mais tempo com ele, sendo que era literalmente isso que eu queria fazer?
será que eu sou contra a existência de soluções? ou será que só estou frustrado porque alguém gritou a resposta antes de mim?
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tem um jogo chamado Heaven's Vault. você joga como uma arqueóloga num mundo fictício, visitando ruínas e decifrando alfabetos antigos. ele tem vários mistérios - praticamente toda a história do mundo é um mistério, que você deve reconstruir ao longo do jogo. é muito bom!
quando eu zerei o jogo, eu também não entendi nada. mas dessa vez, aconteceu algo engraçado: eu encontrei uma thread nos fóruns da steam criada pelos próprios desenvolvedores do jogo, intitulada "10 Big Questions". nela, eles listavam dez perguntas sobre a lore do jogo, pra testar o conhecimento dos jogadores que haviam acabado de zerar. eu sabia responder... 1 das perguntas. eu não fazia ideia sobre o resto.
surpreendentemente, eu não estava sozinho. muitos dos comentários na thread eram contraditórios, e ninguém sabia responder tudo. não havia consenso na comunidade, apenas teorias.
isso me motivou a voltar ao jogo, e recentemente, eu zerei ele de novo. com as perguntas em mente, minha playthrough foi direcionada - eu inclusive peguei um caderno pra copiar certos diálogos e anotar minhas teorias!
agora, eu sinto que consigo responder uma das perguntas com 100% de confiança. pelo que li na thread, minha ideia não é inédita, mas ninguém tentou embasar ela com screenshots e diálogos do jogo. eu consigo fazer isso. e, também, não existe nenhum espaço pra interpretação - tenho quase certeza que essa é a Resposta Final.
eu começo a digitar, orgulhoso. meu coração acelera. finalmente, eu cheguei a tempo! eu posso ser o vaati vidya!
eu paro, e penso. apago metade dos meus parágrafos. o que sobra não é uma resposta final, mas apenas uma sugestão. um esboço.
ninguém precisa de mais respostas.