o ano é 2007, e eu tenho 9 ou 10 anos. eu estou sentado na frente do computador, jogando a minha última obsessão: o MMORPG MapleStory. eu vou passar mais de 2 anos jogando esse jogo, mas eu não sei disso ainda; a única coisa que eu sei é que eu estou dentro de um barco, prestes a sair da ilha de Victoria pela primeira vez.
vamos falar sobre o barco.
o barco funciona como todos os outros transportes de longa-distância de MapleStory - ou seja, de uma forma extremamente específica e convoluta:
resumo da ópera: num total, viajar de um continente ao outro em MapleStory pode demorar mais de 30 minutos, com pouca ou nenhuma ação do jogador envolvida.
nesse momento, você pode estar se perguntando: "por que que alguém construiria tal método de tortura?". afinal de contas, parece contrário a todo tipo de Bom Game Design(TM) que existe e é ensinado por aí! ninguém joga jogos pra ficar sentado esperando, e eu mesmo nunca passaria por isso hoje em dia: eu trabalho, tenho 3h pra jogar jogos no fim do dia (se muito), e não me parece razoável gastar 10 ou 20% desse tempo numa loading screen glorificada... essa decisão de design não parece fazer muito sentido!
mas isso fazia todo o sentido em MapleStory. porque MapleStory, assim como muitos outros MMOs, não era só um jogo - ele era um espaço.
você não jogava MMOs - você vivia neles. esses jogos queriam ser quase literalmente um espaço físico alternativo onde você poderia fazer tudo que você faz na vida real: conversar, cozinhar, se vestir, montar comunidades, arrumar sua própria casa, ter um animal de estimação, etc. tudo isso, é claro, com uma persona que você mesmo escolheu: outra aparência, outro nome, e até mesmo, outro gênero. o exemplo mais gritante é o MMO literalmente chamado "second life", mas eu argumentaria que vários MMOs dessa época seguiam esse mesmo princípio: de permitir ao jogador ter uma vida alternativa em um espaço alternativo.
o barco do MapleStory exemplifica isso perfeitamente. os tempos de espera servem pra simultaneamente (1) passar a sensação de que os continentes são fisicamente distantes entre si, e (2) instigar o jogador a usar os outros sistemas do jogo. o tempo de espera não era um momento em que o jogador se "desengajava" do jogo, muito pelo contrário; era um momento de calmaria no qual eu me dedicava às outras atividades que o jogo também permitia, como por exemplo botar o papo em dia com meus amigos virtuais, fazer trocas, jogar minigames, fazer novos amigos durante a viagem, e assim por diante... se a viagem fosse um "fast-travel" instantâneo, isso não aconteceria.
esse princípio - do mundo digital como uma realidade física alternativa em que você pode ser outra pessoa - não era particular a MMOs, apesar deles serem um dos exemplos mais claros disso; ao meu ver, isso era uma coisa comum na internet dos anos 90~2000. eu passei boa parte da minha infância em sites como Neopets e fan-fóruns (por exemplo de pokémon), e ambos eram sites que, de uma forma ou de outra, também buscavam simular espaços físicos. Neopets, além de literalmente ter um mapa-múndi a ser explorado, também permitia que você praticamente morasse lá dentro: dava pra conversar, vestir seus pets, aplicar na bolsa de valores, etc. e fan-fóruns, apesar de não serem tão versáteis, eram divididos em "regiões" e tinham muitas das mesmas características que um ambiente físico onde as pessoas se encontram e re-encontram dia após dia (como por exemplo bares ou praças).
(esses são os exemplos da minha própria experiência, mas o que não falta são termos web que fazem analogia a espaços físicos: a pagina inicial de um site é a "home page" ou "portal", cada aba do PC era uma "janela" (de onde vem o nome Windows), o GeoCities era dividido em cidades e vizinhanças, etc...)
então a web funcionava como um espaço "físico" alternativo onde eu interagia com outras crianças da minha idade. mas ela não era o único espaço do tipo: evidentemente, tinha a escola.
a escola também era um espaço que eu visitava diariamente onde eu socializava com outras crianças. pode parecer meio bobo comparar os dois, mas pra mim eles desempenhavam o mesmo papel: o de um espaço social. além disso, tinham várias similaridades: ambos eram "fechados" no sentido de que eu não falava com meus amigos da internet fora da internet, e eu não falava com meus amigos da escola fora da escola (me lembro de pouquíssimas vezes em que um amigo da escola me visitou em casa, ou o contrário: por alguma razão, isso simplesmente não acontecia (pode ser porque eu morava no cu do mundo)). ambos também tinham um ponto de acesso físico: pra entrar na internet eu tinha que estar na frente do computador, e pra estar na escola eu tinha que ir pra escola.
a equivalência desses dois "espaços sociais físicos" moldou bastante a minha visão de mundo. eu sou filho único, e nunca tive amizade com crianças que moravam perto de mim, então na prática esses dois ambientes eram realmente os únicos lugares onde eu interagia com outras crianças da minha idade. quando eu não estava na escola e o computador estava desligado, eu estava quase sempre sozinho (com exceção é claro dos meus pais). então na prática, socializar era algo bem consciente: era evidente pra mim que existiam duas personas distintas - o vinicius da escola, e o vinicius da internet -, e ambas eram isoladas uma da outra. eu não falava sobre a internet com meus amigos da escola (porque eles não tinham computador e achavam tudo aquilo muito estranho), e eu não discutia sobre a escola com meus amigos da internet (porque, segundo minha mãe, eram todos pedófilos). ou seja, existiam dois vinicius, e eles jamais deveriam se encontrar.
mas em algum momento, tudo mudou.
no início foi sutil. as aulas do 1º ano do ensino médio começaram a ser interrompidas pelo som de aves assobiando: sinais que anunciavam a chegada de mensagens da Internet(TM). eram os aparelhos celulares das crianças mais ricas da turma, que esbanjavam o misterioso "3G". em tese meu celular também tinha acesso a internet, mas era mais uma piada do que qualquer coisa: o consumo de rede era caríssimo, nada carregava, e quando carregava as páginas eram uma bosta. esse não era o caso dos meus colegas de classe. nos celulares deles, as páginas carregavam rápido e bem, e eles conseguiam baixar jogos, ver notícias, falar uns com os outros, colar nas provas... eles realmente estavam acessando a internet.
não demorou muito pra que alguns dos meus "amigos virtuais" também comprassem smartphones, e em pouco tempo eles passaram a se comunicar primariamente usando o tal do whatsapp. meu celular não era inteligente o suficiente pra instalar aplicativos; ao invés de me sentir excluído, eu só me sentia confuso. como que eles estavam conectando duas realidades fisicamente distintas? por que? não fazia sentido pra mim, eu ficava tipo aqueles cachorros reagindo a truque de mágica.
mas eventualmente eu ganhei meu próprio celular, com meu próprio 3G, e pude contribuir pro evento global no servidor de MMO da vida: a fusão dos dois mundos. é difícil pra mim entender o que faz parte da minha experiência pessoal e o que fez parte da história da internet, mas pra mim houve esse grande momento em 2008~2012 em que a internet foi deixando de ser um espaço físico. os fóruns morreram, os MMORPGs começaram a ser substituídos por jogos "de partida" (league of legends, tf2, dota), neopets foi brutalmente assassinado... e lentamente, eu comecei a usar o celular pra conversar com meus "amigos virtuais" durante aulas, ou em viagens do transporte público, ou até mesmo antes de dormir. eles começaram a habitar o mesmo aplicativo que eu usava pra falar com meus colegas de classe.
e nessa nova realidade, não existiam mais dois vinicius. Mark Zuckerberg profetizava:
"You have one identity... The days of you having a different image for your work friends or co-workers and for the other people you know are probably coming to an end pretty quickly... Having two identities for yourself is an example of a lack of integrity."
-- Mark Zuckerberg, em David Kirkpatrick's "The Facebook Effect" (2010)
agora você podia acessar a internet de qualquer lugar, a qualquer momento!! você não precisava mais visitar um espaço físico (sentar na cadeira do computador), ou separar um tempo especial (o tempo de estar no computador); a internet deixou de ser uma atividade específica e se tornou uma extensão dos nossos sentidos, como água pra peixes. agora com o celular no bolso, eu podia falar com qualquer um: meus amigos virtuais estavam na escola, meus amigos da escola estavam em casa, todo mundo estava aqui. isso era inegavelmente positivo: eu passava 2h+ por dia em transporte público, e todo esse tempo que parecia improdutivo e entediante agora podia ser preenchido com textos engraçados do reddit ou memes do facebook. as aulas chatas podiam ser dribladas com checadas rápidas no whatsapp. nenhuma fila de consultório era párea pra jetpack joyride ou Perguntados.
e assim, eu deixei de ser um escravo do físico e geográfico; a qualquer momento que a realidade física parecesse entediante, eu podia acessar a internet e preenchê-la com memes e piadas e conversas e música e com literalmente qualquer coisa!! não é o máximo!?!
não.
eu demorei anos pra entender o que estava acontecendo. primeiro foi a minha memória: eu chegava no final do dia e não conseguia lembrar detalhes do que tinha acontecido. horas se passavam num piscar de olhos: acordo, pisco, assisto aula, pisco, almoço, pisco. era como se eu estivesse vivendo a vida no fast-forward. em seguida foi a minha concentração: eu estava ficando cada vez mais distraído e não conseguia ler livros nem por um caralho. depois de um certo tempo, eu me sentia sonâmbulo, alheio ao meu próprio corpo. a vida era pra mim como uma viagem de carro, e eu era uma criança dormindo no banco de trás. de vez em quando eu acordava pra perguntar: "estamos chegando?", mas fora isso minhas memórias eram apenas flashes desconexos do cenário.
além disso, minha ansiedade estava ficando cada vez pior. o que estava acontecendo?
parte da resposta veio durante uma viagem específica de transporte público. eu tinha acabado de entrar no ônibus e, como de costume, tinha puxado meu celular pra ver as redes sociais enquanto ouvia música. foi então que percebi que aquilo não tinha sido uma decisão consciente. era por hábito que eu estava sistematicamente removendo a minha visão e audição da realidade física, e transportando ambas pra uma realidade alternativa em que as coisas eram mais legais, mais estimulantes, mais entertaining. eu estava fazendo de tudo ao meu dispôr pra negar o fato mais fundamental de todos: que eu estava, naquele momento, dentro de um ônibus. sozinho.
do fundo da minha alma corroída e fragmentada, uma frase sintetizava o meu desgosto:
eu não estou aqui.
olhando ao redor, vi que todo mundo estava fazendo a mesma coisa.
ninguém está aqui.
[...] When you travel, you are trying to get somewhere and, of course, we, because of being a compulsive and purposive culture, are busy getting everywhere faster and faster till we eliminate the distance between places. I mean, with modern jet travel you can arrive almost instantaneously, and what happens as a result of that is that the two ends of your journey become the same place. So you eliminate the distance and you eliminate the journey.
-- Alan Watts, "Coincidence of Opposites"
em 2017, MapleStory adicionou um fast-travel entre Victoria Island e Ossyria. apesar do barco ainda existir, ele ficou obsoleto.
tenho certeza que o celular não fez nada. mas ele certamente piorou.