quando eu vi paradise killer, a primeira coisa que eu pensei foi danganronpa. a ideia de "solucione um crime numa ilha tropical isolada do resto do universo, em que todos os suspeitos são personagens excêntricos" foi explorada com essas exatas palavras em danganronpa 2 (é tão específico que chega até a ser engraçado). tenho certeza que isso foi proposital - não porque os devs queriam se aproveitar do sucesso da série danganronpa, mas porque eles queriam transcender suas limitações. a maior prova disso é a descrição oficial de paradise killer na steam:
"Gather evidence and interrogate suspects in this open world adventure. You can accuse anyone, but you’ll have to prove your case in trial to convict. It’s up to you to decide who’s guilty."
um jogo de investigação "open-world" que te permite "acusar qualquer um" e "iniciar o trial quando quiser". pra uma pessoa normal essas frases podem não significar muito, mas pra um fã de danganronpa é motivo suficiente pra arquear as sobrancelhas: "perae, como assim?". uma das maiores falhas de danganronpa é justamente a falta de liberdade que ele oferece ao jogador: apesar de muitas visual novels oferecerem rotas distintas e escolhas impactantes, danganronpa não tem nada do tipo. a sensação é que você está assistindo a uma (boa) história, e não participando de uma. e aí chega esse tal de paradise killer e copia a estética de danganronpa e te diz que agora você tem escolhas?? é verdade isso??
tl;dr: é verdade mais ou menos! o jogo consegue inovar a fórmula de "visual novels de investigação" (que inclui não só danganronpa, como phoenix wright) de certas formas que acho bem significativas. no entanto, em certos momentos ele erra a mão e acaba sendo entediante e/ou insatisfatório. apesar disso, tenho certeza que o coração do jogo está no lugar certo e tenho muita curiosidade de ver o impacto dessas inovações em jogos futuros de investigação.
[spoilers das mecânicas do jogo. se você quiser ir puro, é melhor dar meia volta]
a primeira coisa notável é o worldbuilding. em paradise killer, você controla uma detetive que foi convocada de seu exílio pra resolver um crime importante. até aí, tudo bem. o problema é o seguinte: a personagem que você controla é integrante d'O Sindicato, um culto cujo objetivo é ressuscitar deuses lovecraftianos através do massacre de milhares de inocentes. o jogo se passa numa ilha construída artificialmente pelo Sindicato, em particular pela canalização de poderes psíquicos da arquiteta-chefe. além disso, o crime em si foi o assassinato simultâneo de todos os membros da alta cúpula do culto, e aconteceu exatamente no momento em que O Sindicato estava abandonando a ilha nº 24 e indo em direção a ilha nº 25 (basicamente, as ilhas vão morrendo e eles tem que trocar de ilha, como se estivessem abandonando planetas). quase todos os personagens do jogo são membros imortais do Sindicato, com nomes que parecem ter sido gerados aleatoriamente ("Doctor Doom Jazz", "Sam Day Break" e "Crimson Acid"). eu mencionei os alienígenas?
se tudo isso parece meio overwhelming, esse é o ponto. durante boa parte das primeiras duas horas de jogo, a única coisa que eu conseguia pensar era nessa tirinha do xkcd:
eu não estava entendendo nada! como eu ia resolver um crime, se eu nem ao menos conhecia os fundamentos da realidade em que eu me encontrava?? eu normalmente tenho uma resistência grande a worldbuilding tirado do cu (meu livro favorito do tolkien é o silmarillion), mas paradise killer chegou bem perto do meu limite. tanta palavra inventada tava me dando cringe, e a character art terrível não ajudava nem um pouco. eu estava pronto pra largar o jogo a qualquer momento, e se não tivesse gastado 28 reais na compra, provavelmente teria feito isso. mas eu continuei. e quando a poeira se assentou, eu pude finalmente entender o que eu estava jogando: um collectathon 3D.
você passa 90% do jogo "explorando", ou seja, andando de um lado pro outro procurando buracos pra se enfiar e torcendo pra encontrar alguma coisa boa dentro deles. essas coisas boas podem ser evidências que vão te ajudar no trial (os últimos 10% do jogo), itens que aprofundam o worldbuilding, ou moedas que você pode usar pra alguns fins relevantes (como subornar certos personagens). quase todas as áreas estão disponíveis desde o início do jogo, o que significa que você tem total liberdade pra ser curioso e construir a sua própria jornada de exploração - num esquema que me lembra bastante outer wilds e breath of the wild. ao encontrar uma pista, você pode apresentá-la pros personagens e perguntar pra eles o que eles acham daquilo: as respostas em geral são inúteis, mas ocasionalmente acabam orientando a sua exploração, especificando lugares interessantes pra você se enfiar. apesar do jogo estimular que você pegue todas as pistas possíveis, a qualquer momento você pode dizer "chega!" e partir pro trial no centro da ilha, o que me lembra (de novo) breath of the wild.
de fato, eu pensei bastante em breath of the wild enquanto jogava paradise killer. em particular, eu pensei em como esse ciclo de exploração se encaixa muito mais com a investigação de paradise killer do que com a ação de botw. se em botw eu subia as montanhas meio desanimado já sabendo que eu ia ganhar a 71ª korok seed, em paradise killer eu subia com sangue nos olhos, porque eu não tinha IDEIA do que eu poderia encontrar. será que seria uma pista pequena? será que seria uma evidência que mudaria completamente a minha interpretação dos fatos? será que seria mais um mistério? note: essas coisas não estavam vindo da minha cabeça, essas realmente eram as coisas que eu encontrava. isso acontece porque apesar de ser praticamente um collectathon 3D, os collectables do jogo nunca são "mais do mesmo": todos aprofundam o seu conhecimento sobre a história do jogo e/ou sobre o crime em si. isso faz com que o ato de coletar itens encontre aqui uma motivação intrínseca de longo prazo que, pra mim, jamais se manteve em botw ou na maioria dos outros jogos de exploração. sabe quando no botw você sobe no prédio mais alto do vilarejo e tem um korok abanando a bundinha pra você, e você consegue praticamente sentir o game designer dando uma piscadinha? então, isso fere a minha imersão. eu sinto que estou brincando de pique-esconde com o designer, e não encontrando coisas escondidas no mundo real. em paradise killer, os itens escondidos têm o sentido oposto, porque eles me imergem ainda mais no jogo: quem escondeu isso aqui, e por quê?
eu gostaria de enfatizar esse ponto: o casamento entre investigação e exploração é a coisa mais natural do mundo, e quero ver mais jogos de investigação seguindo por esse caminho. (existe uma comparação a ser feita aqui entre a motivação por trás da exploração em paradise killer e outer wilds. em particular, sinto que ow depende bem mais de uma curiosidade mecânica/visual/espacial enquanto a de paradise killer é quase totalmente narrativa. os dois são interessantes por motivos diferentes)
parando pra pensar agora, a exploração de paradise killer só funciona por conta da confusão inicial que eu critiquei anteriormente. quando se está totalmente perdido, qualquer informação é interessante, e essa informação vem justamente através das pistas que você encontra ao longo do jogo. se o jogo se passasse num universo mais realista e imediatamente compreensível, tenho certeza que a exploração seria bem mais entediante e repetitiva. então o que me pareceu uma falha no início pode ter sido uma escolha muito inteligente. olha que legal é escrever as coisas
o level design certamente também é de grande ajuda. a ilha é repleta de ambientes lindos e intrigantes cuja exploração é um ato direto de compreensão do worldbuilding em si. em particular, isso se dá devido ao seu materialismo escrachado: existe uma região em que as pessoas trabalham, uma região em que as pessoas moram, outra em que os alimentos são plantados... você sobe no telhado de um prédio e tem dezenas de ar condicionados!! áreas aparentemente inofensivas tem distinções sociais claras quando você para pra analisar, e ninguém chama a atenção disso: é como se fosse um segredinho entre o jogo e o jogador. é maravilhoso. só andar por aí já te dá muito no que pensar, e isso ajuda a manter a exploração refrescante.
então 90% de paradise killer é exploração e em geral ela se conecta muito bem com os outros elementos do jogo. legal! no entanto, nem tudo são rosas: às vezes eu senti que essa exploração foi straightforward demais. depois de um certo tempo, se instala um ciclo que jamais é revisado: vá em todas as áreas e suba em todos os prédios, fale com todos os NPCs e esgote todas as opções de diálogo, e pronto: você vai encontrar todas as pistas. não existe quase nenhum momento em que o jogador precisa pensar como um detetive pra tentar encontrar uma pista, ou entender como elas se encaixam. apesar do jogo propagandear "liberdade", eu senti que raramente tive que engajar intelectualmente pra progredir - na maior parte do tempo, eu continuava assistindo a um mistério, assim como em danganronpa ou phoenix wright.
especificamente, essa "não-participação" se infiltra em dois outros sistemas: o diálogo com os NPCs e o menu de pistas.
como falei anteriormente, os diálogos com os NPCs são parte da exploração, e boa parte do tempo que você passa explorando é justamente indo de um personagem pra outro. apesar dos diálogos terem escolhas, na minha experiência isso significou muito pouco e não consegui perceber nenhuma mudança significativa no gameplay, ou na forma como tais personagens me trataram. todos eles tem um nível de "amizade" que você pode upar simplesmente falando com eles, e inevitavelmente você chega no nível máximo e desbloqueia tudo que aquele personagem tem pra oferecer, inclusive quaisquer pistas que ele esteja escondendo. assim que eu percebi isso eu fiquei mais triste, justamente pelo jogo estar "mostrando as cartas" e deixando claro pra mim que "this is where the fun stops" (nas palavras de jim crawford). não existe escolha de fato, a não ser a ordem em que você fala com eles.
o segundo sistema que me incomodou foi o menu de pistas. basicamente, o jogo junta todas as evidências em um menu e te permite visualizá-las de diversas formas, como por exemplo: pra um crime X, quais as pistas que incriminam cada personagem, e quais personagens estão mais incriminados. ora bolas, pra descobrir quem é o culpado, é só você ver qual personagem que tem mais pistas apontando pra ele, e pronto! é claro, eu estou simplificando as coisas aqui (o jogo subverte isso em 1 caso, e não existe nenhuma garantia de que o jogador vai ter todas as pistas em mãos), mas ainda assim, eu não gostei. antes de entrar no trial no fim do jogo, só de olhar o menu de pistas já dá pra entender perfeitamente a solução do crime, e de fato todas as minhas suspeitas foram confirmadas. pode-se argumentar que isso significa que eu explorei bem e fui um bom detetive, e eu concordo, mas como um jogador eu achei chato. não é como se eu não quisesse que a informação estivesse estruturada de alguma forma (eu adoro o mapa de rumores do outer wilds, por exemplo), mas a questão é que o jogo estrutura a informação de uma forma muito óbvia. tenho certeza que deve existir alguma forma melhor de fazer isso.
esses dois exemplos (o sistema de diálogo e o menu de pistas) dão uma sensação estranha de que o jogo está se jogando sozinho. o que certamente acontece bem mais em danganronpa/phoenix wright, mas aqui é pior porque acaba parecendo propaganda falsa!
eu também tive um outro sentimento desconfortável. o jogo se inicia logo após o crime, e o jogo termina logo após a resolução do crime no trial, ou seja: durante todo o jogo, nada acontece. todos os personagens estão parados esperando você coletar as pistas, e durante todo esse processo de coleta, o único desenvolvimento narrativo que acontece é dentro da sua cabeça (você entendendo o que aconteceu). os personagens não se movem ou dão qualquer sinal de vida, e a ilha é fundamentalmente estática (o que fica ainda mais estranho quando você pensa que ela tem um ciclo dia/noite muito bonito). a sua relação com os personagens também não muda significativamente. chega a ser irônico: paradise killer se encaixa perfeitamente no gênero "explore as ruínas de um mundo abandonado" (dark souls, FEZ, outer wilds, heaven's vault, etc), mas dentre esses jogos, o mundo de paradise killer é o mais estático de todos, apesar de ser o mais teoricamente vivo! (a ilha em si está abandonada, mas a ilha ao lado está densamente povoada). essa sensação de "nada está acontecendo de fato" me deixou desconfortável, provavelmente porque os espaços em si implicitam tanta vida (como falei anteriormente). não sei até que ponto esse desconforto foi intencional, mas eu reclamaria que ele conteve uma pitada de tédio.
vamos falar do trial. o jogo apresenta um único trial no fim do jogo, e ele é dividido em diversas partes (uma pra cada crime, já que tem vários). em cada um desses crimes você pode acusar qualquer um, e em retrospecto, fica claro que todo o jogo é construído de modo a viabilizar isso:
tematicamente, acusar todo mundo faz sentido porque ninguém é realmente "inocente", num sentido filosófico. na prática são todos cúmplices de uma organização que sistematicamente assassina milhares de pessoas, e isso fica claro ao longo do jogo.
narrativamente, acusar todo mundo faz sentido porque ninguém é realmente "inocente", num sentido literal. quase todos os crimes possuem evidências que apontam pra mais de uma pessoa, e você tem que "tomar um partido" pra escolher quem incriminar. em alguns casos isso é feito com base na amizade (eu confio mais no personagem X do que em Y), mas em outros envolve conhecimento tácito (por exemplo, não tem muitas evidências apontando que o fulano cometeu esse crime, mas eu sei que ele cometeu o outro crime, então será que isso também não é uma pista?)
mecanicamente, acusar todo mundo faz sentido porque o jogo não tem ideia de quais pistas você pegou, então a solução que ele oferece é: acuse quem você quiser com as pistas que você tem, e vamos fazer um "yes, and..." e prosseguir. isso significa que você pode executar inocentes, se tiver evidências o suficiente pra incriminá-los! é um contraste imediato ao "shimata >_<
" de danganronpa, que te força a refazer o mesmo diálogo até escolher a resposta certa.
além de se encaixar com o resto do jogo, essa ideia de "acusar qualquer um" também oferece ao jogador um meio de expressão que é raro em jogos do tipo (na verdade, é raro em jogos em geral!). ao longo do jogo você vai entendendo o que é essa realidade na qual você se encontra, e quais são os segredos dessas pessoas que a protagonista chama de "amigos". inevitavelmente, você acaba concordando ou discordando de algumas coisas (O Sindicato deveria continuar existindo? ele deveria ser reformado? etc), e no trial você pode expressar isso na escolha dos acusados. se você suspeita que um personagem é culpado mas acha que ele está "moralmente ileso", incrimine outra pessoa! se você acha que um personagem é nocivo pro mundo mas inocente, contorça as evidências a seu favor! e assim por diante. dessa forma, se a "liberdade" propagandeada não brilhou na exploração, ela certamente brilha no trial.
o problema é que poucas coisas literalmente brilham no trial.
em danganronpa e phoenix wright, o trial é toda aquela papagaiada meio "ohh" que te tira do sério e embrulha seu estômago. a música é especial, os personagens mudam de sprite, são lantejoulas pra todo lado... é o clímax do jogo, porra! vambora!! em paradise killer? você basicamente interage através da mesma caixa de diálogo que usou o jogo inteiro, e depois de escolher quem você quer acusar, o jogo praticamente se joga sozinho. a protagonista vai explicando o que aconteceu usando as evidências que você encontrou, e em seguida os outros personagens reagem, e você pula mais diálogo... e é isso. seria mais interessante se o que estivesse sendo dito fosse bombástico, mas como falei, todas as suspeitas que eu tinha antes do trial se concretizaram, então... é, eu não gostei. o trial não pareceu um momento especial, muito pelo contrário.
pior do que o que acontece no trial é o que acontece depois do trial, lê-se, nada. apesar do jogo oferecer diversas escolhas interessantes ao jogador, ele não reage a elas de nenhuma forma significativa. o diálogo pós-trial é praticamente idêntico independente de quem você acusa, e o jogo não fornece nenhum conteúdo que comenta sobre o que aconteceu durante o trial. de fato, parece que eles estão com pressa de rolar os créditos: o bartender está desligando a luz e te olhando com cara feia... deixou uma impressão final tão ruim que eu já nem sei mais se recomendaria o jogo. o trial é mecanicamente bem-feito, mas o audiovisual e a narrativa paparam mosca.
o que é bizarro, porque a componente audiovisual é uma das mais fortes no jogo inteiro. as músicas são boas (apesar de já estarem começando a encher o saco no final), e a direção de arte é uma das melhores que eu já vi. às vezes eu só ficava parado olhando o mundo do topo de uma estrutura alta, vendo as estrelas andarem e o ciclo de dia/noite passar...
em conclusão, paradise killer traz um ar fresco tanto pro gênero de investigação quanto pro de exploração, e cria um mundo memorável tanto pela sua direção visual quanto pelo seu worldbuilding. infelizmente o jogo derruba o espaguete perto do final, o que é muito perigoso pra um mistério, já que a hora de amarrar as pontas é tão importante quanto as pontas em si. eu recomendaria pra qualquer um interessado em jogos de detetive, e aguardo ansiosamente pra ver jogos que vão seguir nessa mesma onda.