Na primeira cena de Detetive Pikachu, um Cubone chora no meio de um gramado: “buaaaa”. Dois treinadores ouvem o seu choro, e um deles - o protagonista - se aproxima lentamente para capturá-lo. Com a pokébola em mãos, ele murmura: “Oi Cubone… Vejo que você está usando o crânio da sua mãe morta… Tem certeza que essa é a melhor forma de lidar com o luto?”
Hahaha, boa piada, todos riem. É uma referência engraçada, que está ali para sinalizar que esse filme levará a lore de Pokémon a sério. Mas eu não estou rindo, eu estou chorando, porque essa cena sozinha já teve mais lore de Pokémon do que os últimos 20 anos da série principal.
O que é “lore de pokémon”? São todas essas informações que nos informam sobre o mundo das criaturinhas:
Eu gosto desse worldbuilding. Ele faz o mundo Pokémon parecer vivo, pulsante, real. Um lugar pra se viver, e não uma dimensão de Rick and Morty. Essas informações me ajudam a imaginar os pokémons como seres vivos com suas próprias idiossincrasias animais, ao invés de meros monstros de RPG. Pode parecer bobo, mas se a tese ética da franquia é o amor entre humanos e Pokémons, que melhor forma de amá-los do que reconhecendo cada um por sua individualidade? Não dá pra aprofundar uma amizade sem uma mínima troca de informação. O espírito da franquia envolve ver um Growlithe como um cão fiel, e não como Animal #437 capaz de terraplanar Paris
.
Infelizmente, a Game Freak não liga pra mim, ou pra worldbuilding. Para os RPGs da série principal (que seguem a mesma fórmula há mais de 20 anos), o importante é como um Pokémon luta, a quais tipos ele pertence, e qual sua formação genética. A instituição milenar conhecida como “batalha Pokémon” é comicamente meritocrática: “dane-se seus hábitos noturnos ou sua dieta: você sabe lutar?” Nos casos raros em que a série principal trata de worldbuilding, o foco é em elementos grandiosos como terrorismo e cosmologia - muito distante das informações mundanas nas quais me interesso. É fascinante saber que todos os oceanos são controlados por uma baleia gigante, e que o mundo foi criado por um cervo de 3 metros, mas cá entre nós, é igualmente fascinante saber mais sobre os pokémons que estão ao nosso lado. Do que Oddishes se alimentam? Growlithes andam em bando? Magnemites dormem? São essas as perguntas, meio Animal Planet admito, que fazem um mundo parecer real. “Tem a Pokédex”, é verdade, mas eu quero bem mais do que 2 frases a cada 5 anos. “Lampent é um pokémon fantasma. Ele ronda próximo de hospitais, na intenção de sugar a alma dos pacientes que morrem
”. Como você pode largar esse tipo de informação em cima de mim e não elaborar em cima disso? Isso é fascinante, porra. Eu quero ver isso. Pelo amor de deus, Game Freak, me deixe ver isso.
Eu não estou dizendo que worldbuilding é sempre bom, mas assim como Vitamina D, há um limite inferior que uma pessoa saudável deveria consumir, e eu não estou recebendo esse limite.
Felizmente, nem todos os jogos de pokémon são sobre 4 golpes e eugenia. Quando se trata de worldbuilding, os spin-offs se esforçam bem mais.
Pokémon Mystery Dungeon nos mostra como os pokémons atuam em sociedade, e como eles coordenam seus poderes individuais para criar uma sociedade comunista em que todos se complementam. Pokémon Ranger explora as interações sociais entre humanos e pokémons fora do contexto de “batalhas”. Pokémon Pinball aborda o que aconteceria se o mundo Pokémon fosse um tabuleiro de Pinball.
Eu gosto de todos esses spin-offs. Mas pra mim, talvez o melhor worldbuilding venha de Pokémon Snap.
Pokémon Snap (1999) é um jogo de Nintendo 64 em que o jogador fica sentado num trenzinho tirando fotos de bichos. Quanto melhor a foto, mais pontos ela vale, e pontos desbloqueiam novas fases. São 7 fases, cada uma sendo um bioma diferente com pokémons diferentes (vulcão, praia etc). O jogador também possui itens que podem ser usados para interagir com os Pokémons e garantir melhores fotos, como uma maçã e uma flauta.
O jogo é curto, e pode ser zerado em menos de 4 horas. Durante essas 4 horas, ele leva a lore de Pokémon tão a sério que você poderia chamá-lo de “primeira cena de Detetive Pikachu”.
Vou dar exemplos. Na fase River, o jogador observa diversos Shellders nadando na frente do barco, entrando e saindo do rio. Na margem esquerda, diversos Slowpokes engajam na arte milenar de “ficar de boa”. Mais à frente, há uma placa com um desenho gigante de um Shellder. Tudo isso pode não significar nada para um leigo, mas o verdadeiro Pokéfã™ identificará de cara uma oportunidade de ouro. Tendo em mente o conhecimento de que maçãs atraem Pokémons, o jogador pode fazer uma trilha de frutas de um Slowpoke até a placa do Shellder, o que levará o bichano a enfiar o rabo dentro d’água e… ser mordido por um Shellder.
Vê isso? É assim que o Slowpoke evolui. Não no level 37.
Outro exemplo. Todos sabemos que o Magikarp evolui pra Gyarados, mas por quê? O verdadeiro Pokéfã™ sabe que a evolução é baseada numa lenda chinesa, que diz que as carpas que nadam contra a correnteza do Rio Amarelo e sobem a cachoeira conhecida como “Porta do Dragão” saem transformadas em dragões chineses. Essa história toda é só uma inspiração - nos jogos, o Magikarp evolui para Gyarados no lvl 20. Mas em Pokémon Snap, é claro que não é bem assim. Na fase Valley, há um Magikarp que pode ser movido ao receber uma bomba de fumaça. Caso o jogador carregue o Magikarp por toda a fase, em dado momento ele poderá acertar o Magikarp dentro de uma cachoeira, e concluir sua evolução para Gyarados.
Vai falar que não é maneiro.
Esses são alguns dos exemplos que ilustram, pra mim, o quanto Pokémon Snap é mais fiel à lore de Pokémon. Ao abandonar as abstrações de “níveis” e “golpes” e “tipos”, Snap se foca na única coisa que os pokémons tem de especial: a sua natureza enquanto animais.
Mas não é só ser fiel à lore. Snap também tem diversas instâncias em que ele efetivamente cria os seus próprios aspectos da lore, ao invés de se restringir ao derivativo. Por exemplo: pra tirar a foto de um Dragonite, você precisa jogar quatro bombas de fumaça dentro de um redemoinho. Por quê? Qual a relação entre Dragonites e redemoinhos? Eu não faço ideia, e certamente não está escrito em lugar nenhum; mas isso seria uma explicação ótima pra cacetada de redemoinhos na caverna dos Dragonites na cidade de Blackthorn, em G/S/C. Outro exemplo é na fase Volcano, quando um Magmar propositalmente incendeia um Charmander para fazê-lo evoluir para Charmeleon. Eu nem sabia que pokémons ajudavam uns aos outros a evoluírem! Ou ainda outro exemplo é na fase da caverna, quando descobrimos que Koffings atacam os Jigglypuffs pra fazê-los calarem a boca. Ou também na fase do vulcão, quando os Growlithes dormem dentro de crateras com lava pra ninguém encher o saco deles… Ou… Ou…
Eu gosto dessa merda. Pela primeira vez, esses bichos parecem de verdade.
Pokémon Snap é ótimo, mas pra ser bem sincero, muitos dos spin-offs de Pokémon são ótimos. Graças a eles, posso ser alimentado com novas informações sobre esse mundo fascinante em que todo mundo tem uma ogiva nuclear em casa e crianças comandam os espíritos dos mortos. Se me foco em Snap, é porque ele é o mais carente. 20 anos depois de seu lançamento, Snap ainda não recebeu nada próximo de um sucessor, mesmo com tecnologias perfeitas pra isso (o controle do Wii U e o do Switch poderiam facilmente virar câmeras).
Caso você goste de Pokémon e nunca tenha jogado, eu recomendo que dê uma testada. Ele envelheceu bem, e é bastante curto. Se você gostar, me avise. Aí poderemos chorar nós três: eu, você e o Cubone.