Livro: Digital Minimalism
Autor: Cal Newport
Ano: 2019
TL;DR: Sabe quando um amigo seu concorda com você sobre X, mas por motivos completamente diferentes, e motivos tão idiotas que te fazem sentir vergonha por acreditar em X? Então, é esse livro. Folheie se você quiser dicas práticas sobre como usar menos o celular.
Digital Minimalism é um livro sobre usar menos o celular.
Para Cal Newport, estamos usando muito o celular. Ferramentas que inicialmente foram introduzidas como meras distrações ou quebra-galhos foram ao longo dos anos corrompidas para se tornarem verdadeiros caça-níqueis, sugando cada vez mais da atenção de bilhões para revendê-la por U$ 0,001 a uma máfia internacional de advertisers. Isso não foi um acidente - as Grandes Corporações estão se esforçando para descobrir a ciência do vício e transformá-la em um aplicativo, seja com likes, scroll infinito ou autoplay. Frente a isso, a única salvação para o cidadão comum é se revoltar - praticando o minimalismo digital.
Esse é o nome que Newport dá para sua filosofia, que é o foco do livro. Ela pode ser resumida em: não use tecnologias “porque sim”, pense bastante sobre quais benefícios você quer tirar delas, e elabore estratégias para extrair tais benefícios sem cair nas armadilhas de atenção. Por exemplo, se você quer usar o Facebook para se manter informado sobre a vida dos seus amigos, talvez você não precise fazer isso todo dia - uma sessão semanal bastaria. Outro exemplo: se você quer usar o Twitter pra seguir bons desenhistas nos quais você possa se inspirar, talvez não seja necessário seguir o perfil de Jair M. Bolsonaro. Será que seguir o perfil de Jair M. Bolsonaro foi uma decisão consciente? Ou você só gosta de ficar puto?
O livro é dividido em duas partes. Na parte 1, Newport tenta te convencer de que há um problema, pra em seguida te vender a cura. No capítulo 1, ele conversa com psicólogos, autores e insiders pra fundamentar sua ideia de que as “novas tecnologias” são quase literalmente viciantes, e que estimulam um comportamento pouco saudável nos usuários. No capítulo 2, ele apresenta a solução - o tal do minimalismo digital -, e discorre sobre os princípios dessa filosofia.
Depois disso, o livro passa para a parte 2 (que corresponde a 70% do livro): como, efetivamente, se tornar um minimalista digital? Newport apresenta dicas e truques práticos (a palavra-chave é: práticos) para que você integre tal filosofia na sua vida. São citadas/entrevistadas diversas pessoas que passaram por processos similares, e são discutidas as soluções particulares que elas encontraram. Também são apresentados diversos capítulos argumentando a favor de certos hábitos como “caminhar”, “passar um tempo sozinho” e “escrever cartas para si mesmo”.
Eu peguei esse livro pra ler por duas razões: (i) eu já me interessava por reduzir o tempo gasto com dispositivos eletrônicos, e (ii) tal interesse se iniciou em grande parte por conta de um trecho do livro Deep Work de Newport:
“se você pegar o celular toda vez que estiver entediado, você estará reconfigurando o seu cérebro pra não conseguir lidar com a falta de estímulos”
- Cal Newport, ou algo do tipo
Isso ressoou muito comigo na época (em particular por um interesse prévio em “atenção” 1) e desde então tenho tratado a relação entre atenção e tecnologia com muito mais seriedade.
Então quando descobri que Newport estava publicando um livro só sobre o meu capítulo favorito de Deep Work, fiquei bem animado. Minhas expectativas estavam um pouco altas, eu admito.
No fim das contas, eu não gostei muito de Digital Minimalism.
A parte 1 é pouco convincente, e eu jamais teria continuado a ler se já não concordasse com a premissa do livro. Newport tem a tarefa ingrata de argumentar a favor de algo que não tem muito embasamento científico - o impacto de novas tecnologias no bem-estar psicológico da população -, e eu imaginei que ele acabaria recorrendo a uma argumentação mais “retórica” - argumentar as coisas no plano das ideias, discutindo conceitos de modo que o leitor diga “olha, não sei se é verdade, mas faz sentido”. Foi isso que ele fez em Deep Work, afinal (sei lá se o cérebro humano está sendo reconfigurado mesmo, mas faz sentido!). Mas não; por algum motivo, em Digital Minimalism ele não faz isso. Parece que ele simplesmente esqueceu como argumentar.
Vou dar um exemplo, e juro que vou tentar ser factual. Um dos três princípios do minimalismo digital é “Intenção traz Satisfação
”. A ideia geral é que existe um prazer inerente em tomar decisões conscientes quanto ao uso de tecnologias, ao invés de simplesmente usar o que cair na sua frente. Até aí tudo bem, é um ponto que consigo ver sendo defendido de formas interessantes. Como Newport o defende? Ele começa apresentando o funcionamento da sociedade Amish, e busca surpreender o leitor mostrando que ao contrário do que se acredita, os Amish não são tecnologicamente avessos, mas tecnologicamente seletivos: eles usam painéis solares, tratores elétricos, e de vez em quando até carros. Tal seletividade é, segundo Newport, “um clássico exemplo de minimalismo digital”; e se fosse uma má ideia, os Amish não estariam aqui até hoje, não é mesmo? Pra enfatizar, Newport entrevista membros da igreja Menonita (que são similares aos Amish em sua seletividade tecnológica) e descobre que, pasme, todos eles parecem felizes em não usar celulares.
Ficou convencido?
Deixa eu dar um outro exemplo. Tem um capítulo que é sobre “isolamento” (solitude): Newport quer defender a ideia de que passar tempo “sozinho, sem o input de outras mentes” é necessário para o equilíbrio emocional e a auto-reflexão. Como Newport argumenta a favor disso? Ele começa falando sobre Abraham Lincoln, e sobre como Lincoln gostava de ficar sozinho em casa pensando, mesmo quando os Estados Unidos estava em guerra civil. Newport diz que esse hábito ajudava Lincoln a pensar, e pode muito bem ter ajudado o Norte a vencer o confronto. Newport também fala sobre Martin Luther King, e sobre como MLK passava bastante tempo refletindo, e que foi em um desses momentos de reflexão que MLK decidiu se comprometer com o movimento dos direitos civis dos negros pelo qual ainda é lembrado. Newport também menciona Edward Gibbon, e fala sobre como “Gibbon levou uma vida solitária - sem esposa, sem filhos”, e que no final da vida, as pessoas que o conheciam diziam que ele era feliz.
Portanto, isolamento é bom, e deve ser buscado por todos.
Pelo que pude perceber, a maioria dos argumentos segue essa estratégia insana de vitória por metralhamento de tangentes. Eu não acho nem um pouco convincente.
Mas isso é sobre a primeira parte do livro. A parte 2 também não é muito boa. Se o objetivo de Newport é oferecer conselhos práticos pra integrar o minimalismo digital na vida do leitor, eu não sei exatamente se falar sobre “como caminhar é bom” e “comprar um dumbphone” e “escrever cartas pra si mesmo” é o caminho certo. Na minha visão, se as pessoas estão se entregando tanto às distrações frequentes e frenéticas dos dispositivos eletrônicos, talvez seja porque elas estão desconfortáveis com os próprios pensamentos. Será que o caminho não seria discutir então as razões por trás desse desconforto? Talvez o melhor conselho não seja “coma menos”, mas “coma melhor”. Sob essa perspectiva, parece que no fim das contas todos os truques práticos de Newport são insustentáveis e não resolvem nada.
É uma afirmação forte, mas ao contrário do que você poderia imaginar, Newport concorda comigo - um dos capítulos do livro (“Reclaim Leisure”) é exatamente sobre isso. Esse é o penúltimo capítulo, e como eu disse acima, contraria todo o resto. É triste e confuso. Na visão do Newport desse capítulo, se não preenchermos nosso vazio existencial, abandonar dispositivos digitais será uma experiência desnecessariamente desagradável e em última instância, mal-sucedida. O objetivo é, então, preenchermos esse vazio com prazeres de alta-qualidade: atividades sociais de cunho altamente emocional, como jogos de tabuleiro ou social fitness; e atividades que envolvam esforço físico e trabalho manual, como carpintaria e jardinagem.
“If your life consists only of actions whose worth depends on the existence of problems, difficulties, needs, which these activies aim to solve, you’re vulnerable to the existential despair that blossoms in response to the inevtiable question: is this all there is to life?”
O que posso concluir sobre Newport se a melhor frase dele na verdade é uma citação de Aristóteles?
Eu gostei bastante desse capítulo, e consequentemente achei todos os outros da parte 2 fracos, por estarem missing the point. Entre os conselhos de “caminhe” e “seja rebelde”, Newport frequentemente oferece insights desconexos e banais que poderiam ter sido blog posts.
Pra finalizar, preciso reclamar da escrita.
Sinceramente, a escrita é agradável, clara e concisa. Digital Minimalism é muito fácil de ler, em grande parte porque Newport a todo capítulo (i) anuncia o que vai ser dito, (ii) diz, e por fim (iii) resume o que foi dito. Em certo sentido, é acadêmico e didático. Mas esse protocolismo metódico - junto com alguns outros fatores - me passa a impressão inabalável de que Newport é um robô. Eu não sei, cara. Talvez seja pela falta de analogias, pela ausência completa de um senso de humor, ou pelo desejo sexual latente por otimização e planejamento. Seja como for, achei palpável a ausência de matéria orgânica, e empatizar com ele foi impossível (sem contar que ele deseja escrever um livro sobre os perigos de usar redes sociais, sendo que ele mesmo nunca usou nenhuma rede social). Quando ele diz que “devemos re-enquadrar o não-uso de tecnologias como um ato de resistência contra as grandes corporações”, e termina o capítulo tendo a audácia de exclamar em itálico que “Vive la resistance!”, eu não tenho opção senão olhar nos olhos dele e dizer:
Cara, do que você está falando.
Você é um robô.
Então, em suma, eu não recomendaria Digital Minimalism. Eu concordo que as “novas tecnologias” são perigosas, e que provavelmente há um certo valor em nós, como uma sociedade, reduzirmos o uso dos dispositivos digitais. Apesar disso, sou obrigado a concluir que os únicos pontos positivos da leitura pra mim foram me fazer relembrar da forte relação entre tecnologia e atenção, e me fazer descobrir que existe um campeonato mundial de Pedra-Papel-Tesoura.