março 2023

março foi um mês lento. eu passei a maior parte do tempo doente, com alguma doença estranha que me fez tossir violentamente e ficar cansado o tempo todo. teve uma semana que eu literalmente não consegui sair de casa de tanto cansaço e febre. os médicos me disseram que era "bronquitis" (sic), mas eles também me receitaram um monte de coisa que não ajudou em nada, então vai saber o que diabos eu tive exatamente. felizmente estou melhor agora (e todos os exames deram que eu estou normal), mas ao todo esse mês teve umas 2 ou 3 semanas que eu não fiz nada e meio que só existi. e tá tudo bem!

foi em março também que começou a primavera, mais especificamente no dia 21 de março. é engraçado porque desde pequeno eu sempre ouvi da minha mãe coisas do tipo "ah vinícius dia 21 começa a primavera/outono/etc" e eu nunca dei bola, sabe? é tipo descobrir que hoje é o "dia do datilógrafo" ou "o dia do vendedor de mate" -- legal, mas não me afeta de forma alguma! imagine a minha surpresa então quando, pontualmente na semana do dia 21, eu saí na rua e todas as árvores da rua principal estavam florescendo.

morando na espanha, isso é uma coisa que eu não canso de notar: aqui na europa eles levam esse negócio de estação do ano a sério. no inverno faz frio, no verão faz calor, no outono cai folha e na primavera tem flor. eu não sei como é aí nos outros estados do brasil em que vocês moram, mas no rio de janeiro tem basicamente duas estações: pré-verão e verão, sendo que no pré-verão faz 30 graus e no verão faz 40. como vocês podem ver a variedade é um pouco limitada, então foi realmente bizarro pra mim ver em primeira mão que esse negócio de primavera com flor realmente existe fora de um desenho animado

mudando de assunto: durante as minhas semanas de enfermidade interminável, eu pesquisei bastante sobre azulejos andaluzes. se isso não significa nada pra você não se preocupe, pois pra mim significava menos ainda -- basicamente existe uma região no sul da espanha chamada Andaluzia que tem uma tradição centenária de produção de azulejos, também conhecidos como "quadradinhos de banheiro". exceto que os azulejos andaluzes não são meramente uma decoração pra você analisar enquanto caga -- os azulejos deles são fodas, e eu acabei escrevendo uma página inteira pra tentar te convencer disso. se você já jogou um videogame na vida e notou que as coisas eram divididas em quadrados, tenho certeza que vai achar no mínimo interessante descobrir que uns caras há 500 anos estavam fazendo a mesma coisa!!

um outro assunto sobre o qual eu me interessei esse mês foram fantranslations. tudo começou quando apareceu na minha timeline um vídeo de 30 minutos chamado "What it takes to fan-translate a video game", em que o autor explica em detalhes como ele traduziu um jogo de PS1 de japonês pra inglês -- mais especificamente, Dr. Slump:

sendo um graduado em ciência da computação, eu aprendi a jamais subestimar a dificuldade de qualquer tarefa que envolva um computador, mas mesmo assim eu me surpreendi com o trabalho ENORME que dá traduzir um jogo desses. é um desafio técnico, sem dúvida, mas acima de tudo é um desafio psicológico: você está fazendo algo que não foi feito pra ser feito, e cada passo do caminho é um lembrete doloroso disso. por exemplo:

...e vamos supôr que você consiga, depois de semanas ou meses de esforço, traduzir a porra toda de uma maneira que tudo parece estar funcionando. você tira screenshots, mostra pros outros, comemora, e SUBITAMENTE você descobre que algumas cutscenes do jogo começaram a congelar. do nada. o que que você fez de errado?? não faço a menor ideia -- divirta-se!

fazer uma fantranslation a partir de uma ROM é tipo clonar um frango a partir de uma foto de um ovo. sendo que clonar é o primeiro passo: tu ainda tem que modificar ele geneticamente pra fazer ele cacarejar em inglês

e eu confesso que parte de mim vê isso tudo e pensa: "meu deus! eu jamais conseguiria fazer isso", o que me deixa severamente deprimido. porque de certa forma, eu fui treinado pra isso, sabe? eu estudei esses assuntos na faculdade. eu aprendi sobre compiladores, e sobre código assembly, e sobre ponteiros e algoritmos de compressão. é claro que eu não usei nenhum desses conhecimentos desde então, mas em teoria eu deveria ser capaz de enfrentar esse desafio, e é frustrante saber que eu me sinto brutalmente despreparado pra chegar minimamente perto dele.

...e foi no meio desse furacão de emoções que eu encontrei esse relato maravilhoso, escrito pelo programador que trabalhou na fantranslation do Policenauts.

primeiro o contexto: no longínquo ano de 2008, quando as rádios brasileiras alternavam entre as recém-lançadas "Boa Sorte / Good Luck" da Vanessa da Mata e "No One" da Alicia Keys, havia um fórum num canto pacato da internet chamado Something Awful, no qual as pessoas postavam, dentre muitas coisas, um formato de thread chamado "Let's Play". nessas threads, os autores postavam screenshots de jogos seguidos de comentários engraçadinhos embaixo, exatamente como a gente entende um Let's Play de hoje em dia -- mas num formato textual.

e nesse momento em questão, existia um cara (chamado slowbeef) que queria muito fazer uma Let's Play de Policenauts, um jogo de 1994 escrito e dirigido pelo famigerado Hideo Kojima. só tinha um problema: Policenauts só tinha sido lançado em japonês, e apesar de uma equipe ter conseguido extrair e traduzir o roteiro do jogo, ninguém tinha conseguido a façanha técnica de meter esse roteiro dentro do jogo pra fazer uma ROM traduzida jogável. mas beleza! com o roteiro em mãos, dá pra traduzir as screenshots e fazer um Let's Play traduzido -- aí a comunidade inteira consegue experienciar o jogo em inglês, de certa forma. tá de bom tamanho, não? com essa ideia na cabeça, slowbeef entra em contato com o cara que tinha traduzido o roteiro, e pede acesso ao texto. o tradutor concorda em dar o script do Prólogo... e nada mais.

nesse momento, slowbeef percebe que ele precisa dar um jeito de convencer o cara a liberar mais do roteiro traduzido. ele precisa de uma moeda de troca. então, ele começa a considerar a possibilidade real de contribuir ele mesmo pra tradução como um programador, já que ele tinha se formado em ciência da computação (há quase uma década!). e é justamente nesse momento em que o relato começa:

"No. No, I can't. It's beyond me."  
    

That is my first instinctual reaction. I don't even _think_ about this or mull it over, it just comes out. For some reason, this just seemed way out of my league. Assembly hacking/reprogramming a video game's executable to make Japanese into English was for an idiot savant, or guys who did tensor products over breakfast.

Me? I was a Java programmer who did server side web stuff. I hadn't gone that low-level since college, and ...

[...]

It was sobering, and depressing. And awful. I had a technical challenge that deep down, I knew I couldn't do. And I'd done it professionally for ten years.

exatamente a mesma reação que eu tive!! é sempre muito especial quando alguém transmite com exatidão o que você achava que só você sentia.

eventualmente, slowbeef aceita o desafio e decide participar da equipe de tradução do jogo como programador. durante os próximos oito meses, ele aprende uma caralhada de coisa sobre ROM hacking, encontra inúmeros obstáculos, fica intimamente confortável com o código do jogo, e quase desiste do projeto umas 3 vezes. mas tudo dá certo no final, e em agosto de 2009 a tradução do jogo é disponibilizada publicamente na internet, fazendo com que finalmente todos os jogos do Kojima estejam disponíveis em inglês.

eu recomendo que todos leiam o relato! a escrita do slowbeef é engraçada, provavelmente por conta dos anos que ele passou escrevendo Let's Plays. é uma montanha russa de emoções que ilustra muito bem o sentimento de "uma tarefa que não quer ser feita". depois de ler todo o relato, eu confesso que fiquei um pouco nostálgico. apesar de 2008 não ser tão distante assim, pra mim essa época pré-smartphone parece que foi há uns mil anos atrás, quando não só o mundo era muito diferente, mas a própria internet (algo sobre o qual eu já falei extensamente).

e eu penso: o que será que esse cara tá fazendo agora? será que ele ainda pensa nessa tradução até hoje? será que ele ainda se orgulha? será que ele se introduz em festas com "olá, eu hackeei Policenauts e ajudei na tradução dele pra inglês"? será que ele ainda tá vivo?

em "Voices Out of the Darkness", o assiriologista/historiador/feiticeiro Irving Finkel fala sobre o trabalho dele como curador no British Museum, que envolve ler muitas tábuas cuneiformes da antiga mesopotâmia de 4000 anos atrás. e o que ele fala é que, apesar da distância histórica ser tão grande e nos dar a impressão de que essas pessoas são -- de alguma forma -- inerentemente diferentes de nós, essa impressão não se confirma quando você lê os registros que essas pessoas deixaram pra trás. boa parte era sobre coisas burocráticas e comerciais, mas muitas vezes com um toque de humanidade que pode te pegar desprevenido. crianças que desenhavam ao invés de fazerem o trabalho de casa, tradutores que mudavam a mensagem traduzida pra não deixarem seus chefes putos, fazendeiros que inventavam as piores desculpas possíveis pra terem pagado menos imposto do que deveriam... é impossível ver esse tipo de coisa sem pensar que essas pessoas eram, no fim do dia, gente como a gente.[^1]

eu sinto algo parecido lendo esse relato do Policenauts, lendo em primeira pessoa sobre um cara que saiu do vazio anônimo da internet, traduziu um jogo, e foi embora. e é isso, essa é a contribuição dele, sabe? ele sem dúvida fez muitas outras coisas na vida dele e tem as suas próprias conquistas, ele pode ser conhecido por todo mundo da vizinhança como um bom pai e um ótimo amigo, mas até onde a gente possa saber, slowbeef é o cara que traduziu o Policenauts. e é isso.

e naturalmente, eu fico pensando sobre como eu vou ser lembrado no futuro. quais artefatos da minha vida vão sobreviver? o que vai ficar de fora? isso deveria importar? são todas perguntas que me vêm à mente quando eu encontro um artefato como esse -- uma mensagem na garrafa.

sem nenhuma expectativa, botei o nome "slowbeef" no google. nenhum resultado. que pena! mas tudo bem, valeu a tentativa.

...não, peraí, eu escrevi errado. eu escrevi strongbeef, é slowbeef. agora sim o google me dá algum resultado! mas espera,

ele tem uma página na wikipédia?!?

em 2007, um ano antes de entrar na odisseia de Policenauts, slowbeef começou uma thread de Let's Play do jogo "The Immortal", lançado pra NES em 1990. a primeira página seguia o estilo normal -- screenshots do jogo com texto acompanhando --, mas na segunda página, slowbeef decide tentar uma coisa nova:

slowbeef é amplamente reconhecido como o criador do primeiro vídeo de Let's Play da história da internet.

quando ele começou a hackear Policenauts, ele já tinha feito algo com um impacto muito maior no mundo (se é que faz sentido mensurar essas coisas). toda a odisseia de hackear Policenauts, a tensão de um homem re-descobrindo suas próprias habilidades, o drama do "será que isso é ao menos possível?"... tudo isso recebe uma única frase na wikipédia:

"In 2008, he contributed to a fan translation of Policenauts which came to completion in 2009."

o cara não só não é um anônimo, como ele já não era um anônimo antes de hackear Policenauts.

o mundo é um lugar surpreendente


[^1]: sabe quantas tábuas cuneiforme foram escavadas até hoje? chuta. sério, para e pensa por um momento: imagina essas civilizações mesopotâmicas de antes de Cristo, que viviam lá na casa do caralho desde antes das pirâmides serem construídas. quantas tábuas escritas por eles você acha que a gente encontrou até hoje? na minha cabeça eu pensava: "sei lá! muitas, mas não MUITAS muitas. afinal de contas, antigamente só quem era rico podia escrever né? então não tem como ter havido tanto registro assim" mas a resposta correta é que entre meio milhão e um milhão de tábuas cuneiformes foram escavadas até hoje, das quais apenas entre 30.000 a 100.000 foram traduzidas e/ou publicadas. a maior coleção fica no British Museum, onde o Irving Finkel trabalha: são 130.000 tábuas de propriedade britânica -- o que me lembra da clássica piada: Por que as pirâmides ficam no Egito? Porque elas eram pesadas demais pra levar pra Inglaterra.